Caeté mantém tradição de mais de 200 anos. Crença é de que preserva imagem contra cupins
Em silêncio absoluto e total sinal de respeito, os sete homens entram na igreja, em fila e carregando garrafas de aguardente, da mesma forma como fizeram os seus antepassados. Em poucos minutos, eles vão dar início a um ritual secreto de mais de 200 anos que marca a quarta-feira de cinzas no distrito colonial de Morro Vermelho, em Caeté, na Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Por Gustavo Werneck, no Estado de Minas
A medida, conforme reza a tradição, é para evitar que a madeira se deteriore ao longo dos anos ou seja alvo dos cupins. Coincidência ou não, o fato é que essa é a única peça sacra da Matriz de Nossa Senhora de Nazareth ainda não atacada pelos insetos ou destruída pela ação do tempo.
A entrada no templo barroco, nesse momento, é proibida às mulheres – sempre foi assim e elas não reclamam, certas de que o costume deve ser mantido. O primeiro a chegar à porta da matriz, por volta de 12h50, é Antônio Itamar Vieira, conhecido como Gelatina, de 58 anos. Há 25 anos ele participa do misterioso ritual, que dura cerca de uma hora e até o instante em que Cristo é posto sob um andor com a cruz às costas. “Para nós, Jesus é um pai, então fazemos tudo com muito cuidado”, afirma Antônio Itamar, que trabalha como vendedor, tem quatro filhos e um neto.
A imagem tem 1,85m e é toda articulada. Tiras de couro fazem as ligações dos braços e pernas. Segundo o grupo, é a única do país que fica de pé no altar. Durante todo o ritual, favorecidos talvez pela atmosfera barroca da matriz e o dia nublado, há momentos muito simbólicos, que remetem aos séculos 18 e 19. Um deles é quando o aposentado Walter Estefânio, de 62, nascido e criado no distrito, tira a peruca de Cristo e vai passando a cabeleira para cada um, como se fosse uma irmandade. “É para dar boa sorte”, explica o paulista José Carlos Escalina Dias, de 62, que há cinco passou a fazer parte do grupo. “Tenho muita fé, isso é o mais importante. Na primeira vez, cheguei a arrepiar”, conta José Carlos, casado com Isabel, nascida em Morro Vermelho.
Assim que o Cristo desce do altar, é carregado por todos e imediatamente colocado sobre um pano roxo, dobrado. Depois, os pés são postos dentro de uma gamela de madeira. A cena vem sendo presenciada por Nildo Jesus Leal, de 70, desde quando ele tinha 18 anos, e sempre causa emoção. “Eu era menino e ficava olhando os mais velhos, pela fresta da porta, ansioso para chegar o dia em que poderia estar presente. O meu avô era um dos que davam o banho de cachaça no Cristo, mas meu pai, não. Quem me trouxe pela primeira vez foi o avô do meu amigo Toinzinho”, recorda-se Nildo. Ele abre os botões da veste de veludo roxo, dobra a roupa com cuidado, depois da veste de linho branco, deixando a imagem apenas com um tipo de anágua também imaculadamente branco e do mesmo tecido. Nildo conta que as roupas serão enviadas para lavar e, agora, substituídas por outras limpas.
De acordo com informações da Arquidiocese de Belo Horizonte, à qual a Matriz de Nossa Senhora de Nazareth está ligada, o ritual é de responsabilidade dos leigos e só tem participação deles, sem a presença de integrantes da Cúria, padre ou outros religiosos.
Água Benta
Cada participante pega a sua garrafa, umas de plástico, outras de vidro, e começa a despejar a cachaça, com movimentos suaves, com as mãos, na cabeça, nos braços, pernas e pés. O líquido que escorre será recolhido e aproveitado em diversas ocasiões, diz o pedreiro Antônio Lopes, de 51, o Toinzinho. “Serve para curar feridas e ajudar os enfermos. Da mesma forma, as roupas recém-retiradas do santo podem ser usados por quem estiver doente”, revela Toinzinho, para quem o ritual tem um ar de mistério. O sineiro Sudário José Leal, de 74, é outro que já viu décadas e décadas desse ritual, e não se cansa. “É nossa história”, resume. No momento em que a pinga escorre, Antônio Agostinho dos Reis, com seriedade, aponta os pingos: “Pode pegar um pouco que é benta”.
A etapa seguinte é enxugar a imagem, nesse momento totalmente despida. Nildo veste as roupas limpas e, junto com os amigos, ergue a imagem sobre o andar. Durante toda a quaresma ele fica em destaque na matriz, saindo em procissão no Domingo de Ramos, dia em que, em Morro Vermelho, há o encontro entre Nossa Senhora e Jesus, e na cerimônia do descendimento da cruz e procissão do enterro, na sexta-feira da paixão.
Por volta das 14h, um grupo de mulheres aguarda o momento de entrar na igreja para fazer a limpeza. Elas não demonstram curiosidade pelo que se passa na nave central do templo. “É algo tão antigo, que a gente nem se importa”, diz a dona de casa Maria de Lourdes Xavier Lopes, de 58. “É tradição, então por que iria nos incomodar?”, pergunta Nilza Batista da Silva de 65. Ao lado, estão as amigas Vera Lúcia Madeira Pinto, de 49, Darlene Batista Pinheiro, de 42, e Gilda Lopes, de 61. “Acho que vou tomar um pouquinho dessa pinga hoje, mas me disseram que amarga”, diz Darlene, com bom humor.
Publicado no jornal Estado de Minas
Apud P. Vermelho
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